“Respondeu ela: Ninguém, Senhor! Então, lhe disse Jesus: Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais”. João 8: 11
A modernidade com toda sua tecnologia trouxe algo que ainda não havia sido experimentado pela humanidade: o processo de automatização. A cada avanço, os processos produtivos e as rotinas cotidianas são realizadas sem um esforço maior, principalmente, que exija a intervenção humana. Tudo programável, automático. A considerar a comodidade que isto traz, não é de se admirar a aceitação e a incorporação destas facilidades em nossas vidas: “a lei do menor esforço”.
A pretensão aqui não é de abrir um debate sobre benefícios e malefícios da automação da vida, aliás, sou bem adepto a tais facilidades e por vezes preciso me controlar. O que me preocupa, e, aí sim, a questão que proponho, é quando passamos a considerar as pessoas ou os processos de relação interpessoais, como algo automático, em que dispensamos os cuidados necessários que os relacionamentos entre pessoas exigem. Por mais que a tecnologia tenha avançado, continuamos a ser seres humanos, com fatores emocionais ou comportamentais, que nos individualizam e definem.
Cada um é cada um. Somos iguais em espécie, todavia, únicos como ser. Por mais que tentemos nos segmentar, associar, agrupar, por mais que nos aproximemos dos iguais, nossas respostas nunca serão satisfatórias a todos e todas. Reagimos a fatores e por fatores que por vezes até mesmo desconhecemos. Sim, somos diferentes, indiscutivelmente, entretanto, existe uma essência, uma consciência, algo em nós que nos faz perceber certas coisas pela mesma ótica de valores e justiça. Tão sutil que é difícil de ser descrito. Algo sentido pelo nosso corpo e possível de ser percebido em sua reação.
Desde que me lembro tenho interesse nas escrituras sagradas, mas principalmente nos textos que envolvem narrativas do próprio Cristo. Sou analítico por natureza e tenho necessidade de extrair cada detalhe, a procura de controvérsias e conflitos, que possam gerar certezas ou dúvidas sobre o meu próprio entendimento acerca da revelação de Deus. Não estou, com isso, tentando provar a existência ou não de Deus; ou se é verdade sua revelação; ou algo do tipo. Sinceramente, acredito que já passei desta fase. Quero apenas entender a essência do que Deus é, para poder me aperfeiçoar neste entendimento.
O texto narrado por João, sobre a mulher adúltera pega em flagrante (João 8:1 a 11), é sem dúvida um dos episódios mais conhecidos e debatidos pelos cristãos e estudiosos, com ensinamentos profundos acerca do homem, do pecado, da lei, da graça, da misericórdia e do caráter de Deus. Muitas são as lições aprendidas e com certeza impactou e transformou a visão do homem sobre o reino de Deus e sobre Sua justiça. Quem já teve a oportunidade de ler o Antigo e Novo Testamentos, encontrará nesta passagem uma síntese bem clara do desenvolvimento do processo de redenção.
A traição ou o adultério, é um dos pecados mais complexos do ponto de vista humano com relação às suas consequências, por envolver sentimentos e valores sempre de mais de uma pessoa. O apóstolo Paulo em sua 1ª Carta aos Coríntios, no capítulo 6, verso 18, assevera sobre o pecado de imoralidade, por ser este praticado no próprio corpo. Além do prazer que o ato sexual proporciona aos amantes, há de se considerar que os corpos de ambos, levando em conta suas memórias, ficam marcados. O ato em si já seria um problema em muitas culturas e julgamentos, todavia, gostaria de me ater ao que temos como consequência emocional, o quanto a traição afeta psicologicamente os envolvidos.
No diálogo entre Jesus e a mulher, é notório que ela não é nominada, por mais que se queira especular, na verdade, não há interesse aqui em julgar sua atitude ou emitir juízo condenatório, nem tão pouco ignorar o que ela fez, haja visto, que está bem explícito seu erro, inclusive para ela mesma. Ela não é usada como bode expiatório ou exemplo, e por isso sua identidade não é relevante, para que sua pessoa seja preservada em sua totalidade. O pecado achou condenação, entretanto, a misericórdia a alcança por completo. Seus sentimentos, sejam quais forem, que levaram à aquela atitude, foram resguardados.
À propósito, não há aqui qualquer questão de discriminação de gênero. A presença da figura da mulher nesta passagem, por não citar o homem, parece descriminar o sexo feminino, todavia, encontra razão inversa se observada a letra da lei. O texto legal de Levítico 20:10, condena explicitamente ambos, homem e mulher, adúlteros. Mas, como o texto da lei faz menção à ação empreendida pelo homem contra a mulher, a narrativa de João, elimina a exclusividade de culpa do homem mediante o consentimento da mulher, corroborando com o texto de Deuteronômio 22: 22 a 25, que exclui a culpa e a sentença sobre a mulher que se opor e for forçada ao ato. No episódio, a mulher não é vítima.
Uma atitude de infidelidade, no campo amoroso ou relacional, se fundamenta, ainda que por motivo fútil ou banal, em sentimentos que são alimentados por algum tempo. Estes sentimentos, se expostos e tratados adequadamente, poderiam gerar uma escolha diferente. No ponto em que Jesus a questiona sobre seus acusadores e não os encontra, ele a exime de seu julgamento condenatório, todavia, não a libera da arguição pessoal. A palavra de ordem “vai”, não a isenta das consequências de seu proceder. Ele não a chamou a estar com ele protegida das investidas daqueles que de alguma forma foram atingidos por sua escolha.
“Vai” em vez de “fica”, a condiciona a voltar no ponto em que caiu, a buscar reparação junto aos quais ela traiu. Cito o plural por consequência de que em uma ofensa várias pessoas são de alguma forma atingidas. Nos agarramos à condição de liberdade proporcionada pela misericórdia e perdão oferecidos por Deus, para nos eximir da responsabilidade de corrigir nossos erros junto àqueles que ofendemos. Nos escondemos em Deus para justificar nossa falta de ação em reparar os danos, assim, não somente ficamos emocionalmente doentes, como mantemos enfermas as pessoas que atingimos.
O foco de Deus sempre são as pessoas, o próximo. A escritura é acima de tudo um livro de relacionamento e o amor deve ser a base que direciona nossas escolhas, ele é o cumprimento da lei. O pecado causa dor, em si mesmo ou no outro, sua consequência é sempre a dor. O sofrimento tem origem no pecado. O direcionamento “não peques mais”, remete-a a não voltar a cometer o mesmo erro, mas vai além. Vai no sentido de estancar a sangria, de parar a dor causada no outro. Em reparar os danos, em pedir perdão e usar de misericórdia para arrancar o outro do sofrimento causado.
Dor não mais! É preciso compaixão para estando liberto da dor, do pecado, conduzir aqueles aos quais somos responsáveis por fragilizá-los, a encontrar o caminho de volta. O perdão cura e liberta. Precisamos oferecer o mesmo remédio que provamos. Se somos capazes de causar a dor, somos, em Cristo, capacitados a oferecer o tratamento, a curar a ferida. Não é automático, não mesmo. O medo e a vergonha tentam nos bloquear. Devemos escolher ir. Uma escolha nada fácil, exige esforço e, muitas vezes, até sacrifício. Jesus já fez a parte que lhe cabia. Arrepender é mudar de atitude, é agir, então vá.
M.Ce.Diniz
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